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Este não é um post muito parecido com os outros aqui no blog. Pois eu falo de uma coisa que aconteceu comigo, em um dia desses da quarentena. E que me fez refletir sobre a comunicação pelo olhar.
Além disso, não se trata de uma história extraordinária, tentadora para uma jornalista como eu. É uma história daqueles momentos despercebidos do dia a dia.
Mas, como eu ando buscando olhar mais para as histórias ordinárias, esse dia não passou batido.
Então vou contar brevemente aqui.
Relatos do dia 110 da quarentena
O sol das duas da tarde batia forte no meu rosto esse dia. E, em tempos de máscara, metade de cima bronzeada, metade de baixo branca.
Eu descia pelo quarteirão, com minha sacola de bananas, paçoca, chocolate e luvas de limpeza.
Sobre as luvas, definitivamente, não posso ficar sem elas. As mãos dão no sangue se encostar uma gotinha de detergente no dedo.
E toda semana eu furo alguma parte da luva. Então, lá vou eu comprar mais um par.
Mas, fui feliz, mesmo sabendo que ia andar uma distância de só dois quarteirões da minha casa.
Afinal, já era o dia 110 do “Fique em casa”. Agora já estou chegando no dia 120. Então, especificamente neste parágrafo: sem mais delongas. De longa basta a quarentena.
Na volta, atravessei a rua em direção ao meu apartamento. Descendo, passei na porta de uma casa onde dois moços reformavam a parte externa. Portão da garagem aberto.
Logo que passei, uma senhora chegava até o portão. Falava com um dos moços. Logo que me viu, fez como que quisesse me dar, sei lá, um oi. Ou interpretei errado.
Mas, antes disso, eu que sorri, na tentativa instintiva de comunicar. Porém, logo lembrei que a máscara tampava parte do meu rosto.
“Será que ela viu que eu sorri?”
E assim segui andando. E pensando.
Pandemia e seus efeitos na comunicação…
Segui pensando em como aquela troca de olhares, diga-se de passagem, absurdamente rápida, uns 2 segundos no máximo, me sensibilizou.
Mais de 4 meses de distanciamento social têm me deixado, no mínimo, sensível. Ando querendo ver gente. A olho nu. Sem o revestimento de aparatos tecnológicos.
E, nas raríssimas vezes em que vejo pessoas a olho nu, sinto uma espécie de saudade de ver todo o rosto delas. Me dá agonia não ver a parte de baixo.
Bom, mas a vida tem dessas coisas. Pandemia e seus vários efeitos colaterais. Na nossa comunicação, eles também estão em evidência.
Estamos tendo que nos reinventar e adaptar. Aprendendo novas formas de nos expressar e compartilhar com o outro.
O olhar também fala (e muito!)
Nessa pandemia, talvez um dos aprendizados que precisamos reforçar é que as palavras também saem dos olhos. Para falar, nem sempre precisamos falar, no sentido de dizer com a boca.
Diz-se muito que “um olhar vale mais que mil palavras”. Que “os olhos são a janela da alma”. Quantas e quantas frases temos espalhadas por aí.
E não são só frases. Quantos estudos científicos se debruçam sobre os olhos humanos e sua capacidade de carregar informações sociais e emocionais.
Inclusive li um artigo recente demonstrando como nós lemos estados emocionais complexos por meio da expressão do olhar do outro.
Como diz parte do artigo,
“Os olhos são condutores de luz para a retina e também para estados mentais internos”.
E sabe o que mais me chamou a atenção neste estudo? Que, mesmo quando a parte de baixo do rosto dizia outra coisa em relação à parte de cima, a interpretação do olhar pelo receptor permanecia a mesma.
Curioso né. Estou sempre olhando com outros olhos para esse universo dos olhos.
Porém naquele dia eu me esqueci que o olhar também fala (e muito!). Talvez por que, inconscientemente, lembrei de como a boca é importante na comunicação.
Geralmente direcionamos o olhar para ela; a boca nos ajuda a interpretar e decodificar a mensagem que recebemos.
Até recentemente postei sobre isso no meu Instagram.
Mas, ainda assim, para mim, nesses tempos de máscara por tempo indeterminado, a gente passa a ver coisas que não via. Ou olhar de um jeito que não olhava.
Pandemia e comunicação: o olhar para a vulnerabilidade
Teve outra coisa que esse dia me fez refletir, além de lembrar (de não esquecer) como o olhar fala.
Esse dia me fez perceber que, se não fosse essa pandemia, talvez eu não olharia para aquela senhora da forma como olhei.
Pois eu até pensei em parar e conversar.
“Mas o coronavírus? Eu estou isolada, mas meu marido é médico e está em hospital sempre. Ela é idosa. Estava sem máscara. Não, de jeito nenhum você vai parar e conversar. Vai para casa”.
Então naquele dia senti o peso da vulnerabilidade. Da pandemia e dos impactos na comunicação humana.
Mas, com essa pandemia e sua capacidade avassaladora de escancarar nossa fragilidade, tenho visto que a vulnerabilidade tem seu valor.
Ela nos aproxima. Claro que abrir-se para o outro, de peito aberto, dá medo. Afinal, as relações humanas têm seus riscos.
Mas, o mesmo tempo, é no outro que a gente se vê e se transforma.
Esse foi o dia em que olhei mais para a minha própria vulnerabilidade. E daquela senhora, de cabelos ligeiramente bagunçados e vestido cinza azulado. E “engraçado” que me senti próxima dela.
Então quem sabe a gente não olha mais para o outro sem o peso das máscaras que escondem nossa vulnerabilidade.
Enfim, tomara que a senhora tenha visto que eu sorri. Com os olhos.
Que linda sua escrita, sua análise, sua sensibilidade! Eu acredito muito na comunicação com o olhar e talvez nós estamos desenvolvendo isso sem perceber… Seu texto me fez pensar uma coisa que ainda não tinha assimilado: a máscara nos obriga a dar um sorriso maior pra deixar os olhos mais expressivos, né? E isso é bonito!
Somos extremamente frágeis e sensíveis, necessitamos um do outro sempre, é estranho, é inédito, é surreal, mais parece aqueles filmes sobre o futuro. Somos o futuro, vivemos nele a cada milésimo de segundo. Quanto aos olhos, ah, que texto incrível, hoje msm falando com meu patrão eu disse que ñ me importava com a utilização da máscara, pois, prefiro não só ver, mas enxergar os olhos qd falo com alguém, é uma troca de energia, é uma mutualidade que cabe, essa é a troca de que precisamos.