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Oie! Sim, a cultura do cancelamento está cancelada durante o período de leitura deste post. É a única coisa que te peço, não me cancele.
Afinal, a cultura do cancelamento precisa ser pensada de outros modos que não os originais.
Originalmente, pelo que tenho visto ela é mais comum na internet, especialmente no meio artístico – música – e funciona assim:
- “Errou”: cancela.
- Algum parente ou familiar “errou”: cancela.
- Não fez ou disse nada sobre algo “importante”: cancela.
- Foi mais autêntico: cancela.
- Outros motivos: cancela. Afinal, a internet é cheia de surpresas. Pois nela estamos nós. Humanos.
Neste post, farei um recorte mais, digamos, filosófico, a partir da minha visão quanto ao cancelamento no meio artístico.
Cultura do cancelamento: o termo do ano de 2019
Eleita o termo do ano de 2019 pelo Dicionário Macquarie, a cultura do cancelamento configura-se como
Atitudes dentro de uma comunidade que exigem ou provocam a retirada de apoio a uma figura pública, como […] a proibição de música do artista, remoção das mídias sociais etc., geralmente em resposta a uma acusação de ação ou comentário socialmente inaceitável.
Dicionário Macquarie
A ação ou comentário pode ter sido, por exemplo, preconceituoso ou discriminatório, ou ainda ter sido contra os princípios e valores da pessoa.
Para o comitê de estudiosos do Dicionário Macquarie, trata-se de “um termo que captura um aspecto importante do estilo de vida […] Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”.
Note que a cultura do cancelamento tem em sua essência uma convocação na coletividade. É o conhecido comportamento de “manada”, muito estudado principalmente pelas Ciências Sociais.
Como você viu, o boicote vai além de parar de seguir o artista nas mídias sociais e envolve quaisquer ações que impliquem em prejuízos ao boicotado. Mensagens ameaçadores inclusive.
É como se o cancelado perdesse validade total. Fosse deletado. Não é apenas parar de seguir. É algo que vem de um forte desapontamento e tem força de destruição.
Uma morte virtual.
Em outras situações, se você não se posiciona sobre algo considerado importante pelos “canceladores”, você também é cancelado.
Cancelados em 2019
A lista é imensa. Anitta, por exemplo, foi cancelada inúmeras vezes por diversos motivos, desde políticos até “afroconveniência”.
O funkeiro MC Gui foi cancelado após postar um vídeo nos stories do Instagram em que teria zombado da aparência de uma criança. Ele foi acusado de bullying e se posicionou pedindo desculpas.
Outro caso grave foi o do ator, diretor e roteirista Kevin Spacey, severamente cancelado após ser acusado de crimes sexuais.
Além do mais, a blogueira Bianca Andrade, mais conhecida como Boca Rosa, já foi deletada por milhares de seguidores. Ela teria mentido sobre uma cirurgia de lipoaspiração.
Enfim, eu não tinha ideia de que tanta gente foi cancelada. Tive noção quando fui pesquisar para fazer este post e vi que o Twitter tem até lista de cancelados, em processo de cancelamento e até “incanceláveis”.
Cancele a cultura do cancelamento por mais um instante
Vou encerrar este post com reflexões. Estou longe de querer “lacrar” aqui. Ou seja, vencer o debate, mandar tão bem a ponto de anular o outro.
Aliás, essa é a essência da tóxica “cultura da lacração”, que, muitas vezes, caminha de mãos dados com a cultura do cancelamento.
Mas, observação importante: não acredito que todos que cancelaram algum artista na vida têm essa postura de forma consciente. E se o fizeram, também não julgo.
Afinal, sou humana e tenho alguma consciência dos meus erros, contradições e imperfeições.
E acho que é disso que alguns que cancelam se esquecem. Da natureza humana.
É claro que a cultura do cancelamento tem sua devida importância. Acredito que é, no mínimo, coerente, empresas, marcas e celebridades agir em concordância com o que falam.
Como vimos, há casos sérios, que envolvem acusações de crimes e tudo mais. Outros, nem tanto.
Veja bem, não estou defendendo “erros” de ninguém.
O que quero dizer é que, por trás das marcas, há humanos.
As coisas adoram ocultar sua verdadeira natureza
Essa frase é do filósofo Heráclito (tirada do livro “Tenho uma Ideia”, de Roger Von Oech). E acho que se encaixa perfeitamente aqui.
E, como humanos, somos paradoxais, ambíguos. Temos em nossa essência o não saber muito das coisas como achamos que sabemos.
Erramos muito. Podemos ter condutas incoerentes, podemos tomar atitudes inadequadas com o que a gente pensa.
Sim, todos nós somos assim.
E eu penso que não dá pra rotular as pessoas a partir de uma atitude considerada pelo outro como inadequada.
Não dá pra tomar o todo pela parte.
Nós somos complexos demais pra ser rotulados. Todo mundo erra. Todo mundo. E isso não invalida ou diminui seu caráter, sua competência, em qualquer outro âmbito da sua vida.
Entender que o erro para você às vezes não é erro para o outro. Temos valores e visões de vida distintos.
Como disse a psicóloga Vera Iaconelli no podcast “Este episódio está cancelado”, do Café da Manhã: somos tortos.
Claro que depende de cada caso, mas no geral, acho que precisamos quebrar estes julgamentos.
Isso é bom ou ruim? É humano. Depende do que a gente faz com esse humano.
Talvez pode ser justamente parando de eleger figuras superiores.
Será que, ao cancelar um artista, não cancelamos todas as possibilidades de aprender com o outro?
Cancelamos também a oportunidade de socializar e se conectar de uma forma menos vazia do que por likes e lacrações?
Será que não cancelamos a chance de pensar sobre a nossa própria natureza humana? Que, conscientes ou não, fazemos questão de esconder?
A cultura do cancelamento me fez lembrar uma passagem do livro “Ética, Mídia e Comunicação: relações sociais em um mundo conectado“.
… Desde quando os seres humanos estão dispostos a ouvir e compreender os outros em uma discussão?
A cultura do cancelamento dos artistas no mundo “virtual” apenas exacerbou o que acontece na vida “real”.
E dá para ampliar o cancelamento para “anônimos”.
Afinal: quem nunca cancelou alguém, mesmo que mentalmente, de forma mais velada… estamos juntos nessa.
Mas, voltando: não estou pedindo para ninguém perdoar ninguém, e nem parar de cancelar artistas e, quem sabe, não artistas.
Eu mesma nem sei bem como lidar com essas questões. É complicado. Lidar com o nosso humano não é fácil. Nem com o humano do outro. Mas estou aí, aprendendo e compartilhando com você.
O que, a princípio, é digno de se esconder, “feio” ou ainda “sujo”, como as nossas incoerências e erros, pode ficar, quem sabe, mais belo e limpo quando nos reconhecemos humanos.
Ah, neste podcast eu conversei com uma neurocientista da UNIFESP sobre três fatores que influenciam nossas decisões. Ficou muito interessante e acho que pode te ajudar a pensar mais sobre as suas escolhas, sejam de cancelamento ou não.
Ótimo texto Dani! Semana passada ouvi esse termo e não soube ao certo do que se tratava (deduzi algo similar). Agora vejo que já me deparei com vários cancelamentos, até mesmo feitos por mim de maneira mental ou virtual! Vale a reflexão!
Oi Zé! Que bom vc por aqui! E é isso mesmo… como eu disse: quem nunca cancelou alguém na vida né? Estamos aí, vivendo, aprendendo e compartilhando. Obrigada pela msg e volte sempre viu 🙂
Oi dani! Esse texto me fez refletir em quantos cancelamentos que eu já fiz sem ao menos me dar conta disso! E acredito que a partir de agora vou me monitorar, pois, muitas vezes esse tipo de atitude acaba nos fazendo mal e nem nos damos conta dessas atitudes!
Oi amiga! Obrigada por contribuir aqui Pri! Inclusive vou partir do seu comentário pra acrescentar uma coisa importante. Acredito que, conscientemente e, principalmente, inconscientemente, estamos fazendo julgamentos constantes sobre tudo ao nosso redor, é uma forma de interpretação do mundo. Ele é como a gente o percebe, na verdade, né. E, interessante que, quando fui pesquisar o significado de “julgamento” em alguns dicionários on-line, vi que ele não significa necessariamente algo negativo. É definido como “emitir opinião”, “pressupor”, “imaginar”, “formar conceito”. Então, só pra reforçar a vc, leitor que, veio parar aqui por algum motivo, “julgar” é diferente de “cancelar”. Esta última prática é necessariamente de cunho negativo, no sentido de “destruir” e invalidar o outro, formar um conceito depreciativo da pessoa como um todo a partir de um (ou alguns) fatos.
Oi Dani: adorei seu post. Ouvi sobre a cultura do cancelamento pela primeira vez na semana passada. Me fez lembrar da frase do Theodore Roosevelt que a Brené Brown mencionou em seu documentário (Netflix) e livro Daring Greatly:
“It is not the critic who counts; not the man who points out how the strong man stumbles, or where the doer of deeds could have done them better. The credit belongs to the man who is actually in the arena, whose face is marred by dust and sweat and blood; who strives valiantly; who errs, who comes short again and again, because there is no effort without error and shortcoming; but who does actually strive to do the deeds; who knows great enthusiasms, the great devotions; who spends himself in a worthy cause; who at the best knows in the end the triumph of high achievement, and who at the worst, if he fails, at least fails while daring greatly…”
Uma tradução livre rápida…
“O crítico não conta; não aquele que aponta o tropeço do homem forte, ou aquele que aponta o que o homem forte que realmente faz alguma coisa significante poderia tê-las feito melhor. O crédito pertence ao homem que está na arena, cujo rosto está coberto de poeira, de suor e de sangue; aquele que se esforça valentemente; aquele que erra, que deixa a desejar uma vez atrás da outra, porque não há esforço sem erro e deficiência; mas quem realmente se esforça para fazer as ações; quem conhece grandes entusiasmos, as grandes devoções; aquele que dedica a si mesmo a uma causa digna; ele sabe que, na melhor das circumstâncias, no final, ele triunfará por sua alta realização, e sabe que, na pior das hipóteses, se ele falhar, pelo menos ele falhou enquanto ousava grandiosamente…”
Concordo com você. “Cancelar” alguém parece ser a falta da capacidade de perdoar. Os “cancelados” devem ter feito coisas excelentes para terem atingido o “título” de alguém que as pessoas se quer pensem em cancelar. Mesmo vivendo em 2020 (!) só recentemente passei a começar a querer descobrir o mundo das mídias sociais, em particular o Instagram e Tweeter – que ainda frequento muito pouco. O poder dos influenciadores é enorme. A democratização trazida pelo Facebook, Instagram, Tweeter e grandemente pelo YouTube são fantásticas. Mas vêm, claro, com seus desafios. Que esse nosso mundo interconectado cresça em harmonia, cultivando qualidades como o perdão, bondade e generosidade – mais e mais. Parabéns pelos seus textos!
Oi Thays! Nossa, que texto belíssimo. Esse trecho que vc citou é emocionante, me identifiquei bastante. Vou ver esse documentário! Thays, obrigada por ter contribuído tanto aqui com seu comentário! Suas palavras me fizeram refletir ainda mais. 🙂